Ser uma única família humana – espero não signifique apenas uma expressão que resvale epidermicamente nos lábios, sem entrar profundamente na transformação das mentes.
A surpresa de uma epidemia global e agressiva, avassaladora no contágio, de complexidade inédita, abalou os sistemas sanitários, mesmo os mais organizados, evidenciou a diferença entre os líderes e os populistas, colocou os cientistas unidos no serviço ao bem comum, pôs à prova a capacidade de resistência de pessoal de saúde. Como um ciclone repentino deixou a nu a fragilidade humana, despiu desigualdades sociais e obrigou todos os cidadãos e cidadãs a um cuidado e a uma defesa impensável. São pesadas as dores de quem perdeu familiares e o desalento de quem se viu sem comunidades crentes, embora o vírus tenha posto de joelhos até os não crentes!
Será de prosseguir a lição da ciência a orientar a política e a vergar os políticos a oferecerem à ciência, com exatidão e total verdade, os dados disponíveis para bem de todos. Nesta guerra ao vírus é prejudicial qualquer manobra de informação por interesses políticos, como se conhece nas guerras propriamente ditas. A instrumentalização política dos dados seria um erro muito grave.
A pandemia deixou feridas, que mesmo que se venham a curar, cicatrizarão longamente a economia, a política, a cultura.
De facto, se a chegada da Covid-19 apanhou desprevenida a sociedade, são previsíveis as consequências na estrutura produtiva, na vida económica e social da mais grave situação que a presente geração viveu. Contudo não temos cultura necessária para enfrentar esta crise, como observou Papa Francisco. Revela-se enorme debilidade na imunidade cultural e espiritual diante de conflitos, sobretudo da amplitude global que caracteriza este. Apenas uma visão animada por alguma utopia e pautada pela profecia conduzirá a um futuro para todos. Esta mudança cultural, contrária e oposta ao individualismo imperante, constituirá base essencial para soluções inovadoras. “O que fazemos por nós, fazemos por todos”, que serviu de lema à campanha durante a crise, oriente a vida toda e atinja os comportamentos pessoais e ecológicos.
Uma visão global do planeta, da Casa Comum arrisca-se a ser olhar provisório até conseguir uma solução de vacina para o problema surgido. Seria um desperdício não recolher desta crise um fermento e um caminho para o futuro. Só uma governança mundial da economia, com regras transnacionais, capazes de alterar o pleno domínio das técnicas financeiras, poderá envolver e atrair para um projeto verdadeiramente acima das partes.
A pandepressão da economia, o aumento da pobreza e o problema do desemprego, já em crescimento devido à robótica, vão pedir perspetivas sólidas e escolhas que empenhem a todos os agentes deste campo, orientado por novo modelo de desenvolvimento, que determina o fim do capitalismo. Deixem de repetir que o consumo é a fonte principal da economia. Os milhões disponibilizados por uma Europa, finalmente desperta para a gravidade da situação, sejam aplicados com discernimento rigoroso do maior bem e não esqueçam seja o apoio às microempresas criativas, próximas das populações e com capacidade para encontrar respostas às reais necessidades das pessoas, seja o apoio ao incremento de energias renováveis, de uma agricultura biológica com mercados localizados nos centros habitados, seja ainda a implantação de sistemas de plataformas digitais que facilitem a vida pública, do ensino à fiscalidade.
O assalto epidémico impulsione uma reserva de gratuidade que reduza a disparidade, não exaspere a rivalidade, antes ofereça o antídoto da redistribuição.
Muitos párocos multiplicaram uma presença através das redes sociais e da internet. Despertou um potencial, que não substituiu a presença real do encontro físico, mas atenuou o impedimento causado pela segurança sanitária e apelou para caminhos a desenvolver. A Igreja é chamada a redescobrir uma resposta de autêntica espiritualidade, criadora de profecia e de partilha solidária, de paz e de audácia, de perdão e de justiça, em redobrada atenção aos mais fragilizados e débeis, com apreço pelos afetos, pelos abraços, pela ternura e pelo carinho, por uma sexualidade vivida como expressão concreta de amor.
Há doze anos que insisto na necessidade de a Igreja assumir uma pedagogia social que impulsione uma nova cultura humanista e evangélica. O Papa Francisco tem sido mestre nesta arte, agora bem demonstrada. São necessários líderes servidores capazes de aplicar localmente, com coragem e lucidez, esta pedagogia que seja fermento de nova cultura.
Roma, 9 de junho de 2020
Carlos A. Moreira Azevedo
Delegado Conselho Pontifício da Cultura